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quinta-feira, 3 de maio de 2012

Os instrumentos líticos na abordagem antropotécnica 5


Sibeli A.Viana
PUC Goiás/Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia

Pedro Paulo Guilhardi
Programa Erasmus Master in Prehistory and Quaternary/
Muséum National d´Histoire Naturelle – Paris


Publicado em:
Maracanan/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História. - vol. VII - n.7, 2011 -
Rio de Janeiro: UERJ, 1999 - Anual 
Editora: Marilene Rosa Nogueira da Silva 
Responsável pelo número: Paulo Roberto Gomes Seda




Instrumentos Líticos da Região Central do Brasil
            Apresentamos ao longo do texto que o emprego da abordagem antropotécnica possibilita o alcance, ainda que parcial, das relações entre sujeito e instrumentos e os conhecimentos técnicos e saberes e fazeres que subjazem esta relação. Temos nos utilizado desta abordagem para investigar as ferramentas produzidas em contextos pretéritos, representados por sítios arqueológicos da região central do Brasil pesquisados atualmente por nós[i] e cujas datações regionais remontam até cerca de 10 mil anos atrás. 
            É importante serem consideradas três principais restrições desta abordagem antropotécnica, em se tratando de objetos (instrumentos) originários de sociedades pretéritas: restrição do instrumento com a matéria a ser transformada; da mão (do artesão ou do indivíduo que manipula o objeto) com o instrumento; e a restrição do homem, do instrumento e da matéria em uma relação de espacialidade e sinergia [ii].
            Estas restrições, segundo o referido autor, podem ser encaradas com base na abordagem tecnofuncional. Para tanto identificamos, para o material arqueológico dos sítios da referida região e em fase de pesquisa, duas categorias técnicas diretrizes da cadeia operatória de produção de instrumentos líticos lascados: a debitagem e a confecção do instrumento. A primeira está relacionada à produção da lasca suporte do futuro instrumento, proveniente de debitagem algoritima, assim como Discóide e Piramidal; e a segunda trata da modificação do suporte[iii]. Estes suportes apresentam indícios de predeterminação, dentre eles: o comprimento da lasca suporte, determinado pela dimensão do núcleo, tratando-se, portanto, de lascas ultrapassadas; a produção de lascas com dorso lateral e lascas com talão avantajado e, em direção oposta, gumes naturalmente rasantes, utilizados brutos ou com pequenos retoques. Tais características estão diretamente relacionadas à produção do gume e da área preensiva das ferramentas, atuando no funcionamento das ferramentas[iv].
             A fase de confecção do instrumento é caracterizada pela moldagem da peça e/ou produção do gume, por retoques marginais, para o delineamento e formação de um ângulo de ataque de acordo com a finalidade do instrumento. Estudos de Lepot[v] chamam a atenção para as três partes integrantes de um instrumento artesanal: a zona transformativa, sobre a qual a ação se realiza; a zona preensiva, receptiva de energia; e outra receptora de energia, para instrumentos com cabo.
            Nos sítios arqueológicos em questão não constatamos evidências de encabamento nos instrumentos líticos lascados (zonas receptoras de energia). As marcas de encabamento  estão presentes somente nos instrumentos polidos e provenientes dos contextos mais recentes, onde a cerâmica também se faz presente. Nos instrumentos lascados, portanto, as zonas preensivas e receptoras de energia se sobrepõem e, na sua maioria, são naturais, ou seja, as lascas suportes já trazem zonas adequadas para tal finalidade, como é o caso da presença dos dorsos laterais, da ultrapassagem ou dos talões espessos, são zonas volumosas dos instrumentos que contribuem para uma preensão firme.
            Cada uma destas áreas corresponde ao que Boëda[vi] denominou de Unidade Técnica Funcional (UTF), que se apresenta como um micro-sistema técnico, cujo conjunto de elementos está em sinergia funcional. As UTFs transformativas são constituídas por uma dupla, denominada de plano de bico e plano de corte. A primeira é relativa ao fio do instrumento, que entra em contato direto com a matéria e o plano de corte é a zona que proporciona estabilidade e direção ao instrumento.
            Dentre os instrumentos líticos lascados dos sítios arqueológicos aqui em evidencia, constatamos que todas as ferramentas são unifaciais, sendo que a face inferior plana é uma recorrência necessária, tanto que, algumas vezes, observa-se uma regularização, posterior, da porção plana, limitada às zonas transformativas, o que reforça a importância deste elemento técnico no funcionamento desta UTF. A maioria das categorias[vii] dos instrumentos apresenta pouca modificação da estrutura original do suporte, os negativos de façonnage, entendidos como moldagem do instrumento, em geral foram produzidos com o objetivo de produzir as zonas transformativas, ou seja, criação dos planos de bico e de corte ou zonas preensivas. Em certas ferramenta pode ocorrer diferentes unidades transformativas num mesmo bordo, sendo que cada uma destas unidades está relacionada a uma zona preensiva específica. Em alguns casos ocorrem sobreposições, neste caso, uma zona transformativa é utilizada como área de preensão de outra unidade transformativa.


            As ferramentas aqui caracterizadas são consideradas como multifuncionais e correspondem à grande maioria presente nos sítios arqueológicos investigados por nós. Elas se relacionam ao que denominamos de objeto abstrato, conforme proposição de Simondon[viii]. Nessas ferramentas, cada unidade transformativa teria sido produzida e utilizada de forma independente e, assim como funciona um canivete suíço, mencionado anteriormente, estaríamos diante de uma matriz composta por diversos instrumentos. Mesmo no caso das ferramentas que apresentam somente uma unidade transformativa, o caráter sinérgico entre as diferentes partes da peça, não está presente.  É preciso sempre uma análise global da estrutura da peça, pois não é a quantidade de zonas de gumes transformativos que determina a integração da estrutura da peça.








Situação diferenciada ocorre entre certos instrumentos, como é o caso das pontas de projétil. Nas pontas de flechas todas as suas partes, inclusive a haste e os elementos que a acompanham, como as penas, estão em sinergia completa e atuam diretamente na função e no seu funcionamento. A simetria e equilíbrio que formam e delineiam os bordos, a extremidade pontiaguda, os pedúnculos, assim como o volume e a forma do instrumento, estão totalmente integrados, de forma que um gesto mal aplicado num bordo, ou uma quebra na ponta, pode desestruturar a aerodinâmica e desabilitar a função original do objeto. Neste caso, estamos tratando de uma matriz na qual todas as suas partes estão integradas sendo, portanto, um instrumento concreto , como definido por Simondon[i]. Estes instrumentos eventualmente se fazem presentes nos sítios da região central do Brasil e ainda não foram encontrados nos sítios arqueológicos pesquisados por nós, mas há registro em contextos regionais, como em Serranópolis[ii].
            Nos sítios arqueológicos mais antigos, de cerca de 10.000 anos é recorrente a presença de ferramentas de estrutura plano convexa, tradicionalmente denominada de lesmas[iii] e encontradas em sítios específicos de diversas regiões dos estados de Goiás[iv], de Mato Grosso[v], de São Paulo[vi], de Minas Gerais[vii], assim como Mato Grosso do Sul, Bahia, Piauí e Pernambuco[viii]. Estudos sobre tais ferramentas encontradas em sítios da região central do Brasil[ix], realizados a partir da abordagem tecnofuncional, constatam expressiva variabilidade tecnológica de produção e de esquemas de funcionamento, o que as caracteriza em ferramentas cuja matriz é composta por vários instrumentos específicos, ou seja, trata-se de um objeto multifuncional.
            Todavia, a recorrência de certos elementos técnicos presentes nestas peças, levam a pensar que tais ferramentas estivessem num processo concretização[x]. Dentre os elementos técnicos recorrentes estão: estrutura plana – garantida pelas próprias faces naturais das lascas-suportes; convexidade da face superior – obtida tanto por negativos de façonnage invasivos como pelo “aproveitamento” de superfícies de seixos naturalmente convexos; presença de uma UTF transformativa em uma das extremidades, com delineamento de gume arredondado.
            O desaparecimento destas peças unifaciais (lesmas) na região central do Brasil é cronologicamente datado em cerca de 6.500 antes do presente para a região de Serranópolis e, em período mais tardio, cerca de 4.000 antes do presente, na região de Caiapônia. As hipóteses explicativas para essa “ruptura” tecnológica se embasam em duas proposições: explicação ambiental – associa a mudança cultural a uma modificação climática – já que a data deste período corresponderia a um aquecimento climático no ambiente[xi]. Uma das criticas desta hipótese se pauta no fato dos dados serem muito amplos, não contemplarem as especificidades regionais. A segunda hipótese considera a possibilidade de substituição de populações, que se sustenta nos dados da antropologia física obtidos por Neves e equipe para a região de Minas Gerais[xii]; no entanto, o numero de crânios antigos é pequena, o que torna esta hipótese frágil[xiii].
            Estamos de acordo com Lourdeau[xiv] acerca das incertezas sobre o problema do desaparecimento das lesmas e, que o caminho para tal investigação deve ser ampliado, já que as hipóteses até agora apresentadas baseiam-se em fatores externos. Consideramos que a expansão espacial dos estudos tecnológicos fundamentados na abordagem antropotécnica possa representar novas perspectivas para a ampliação desta questão, assim como para estreitar estudos sobre as relações entre homens e mulheres e seu instrumental lítico.



[i] Idem.
[ii] P.I. SCHMITZ et al. Arqueologia nos cerrados do Brasil Central. Serranópolis I”. Pesquisas. São Leopoldo: IAP, n.44. 1989; P.I. SCHMITZ; A.O. ROSA; A.L.V. BITENCOURT. Arqueologia nos Cerrados do Brasil Central. Pesquisas. Serranópolis III. São Leopoldo. Unisinos, n. 60, 2004.

[iii] Trata-se de instrumentos “confeccionados sobre lascas grandes cujo volume é organizado com retiradas unifaciais na periferia inteira da peça, sempre realizadas à custa da face superior da lasca-suporte” (Antoine LOURDEAU. Le technocomplexe Itaparica – definition techno-fonctionnellle des industries à pieces façonnées unifacialement à une face place dans le centre et le nord-est du Brésil pendant la transition Pleistocène-Holocène et l’Holocène ancient. Tese de Doutorado apresentada à Université Paris Ouest Nanterre La Défense. 2010. p. 686).
[iv] P.I. SCHMITZ et al. Caiapônia - Arqueologia nos cerrados do Brasil Central. São Leopoldo. Ed. Unisinos. 1986.
[v] Embora o sítio arqueológico Santa Elina apresente uma das sequências mais antigas de ocupação pretérita no Brasil, não há evidências destes instrumentos em seu contexto (Águeda VILHENA VIALOU; Denis VIALOU. “Les premiers peuplements prehistoriques du Mato Grosso. Bulletin de la Societé Préhistorique Française. 91(4-5): 257-63, 1994.)
[vi] Águeda VILHENA VIALOU. “Tecnologia Lítica no Planalto Brasileiro: Persistência ou Mudança”. Revista de Arqueologia, v.22, n.2, (Ago-Dez.2009), pp. 35- 53, 2009.
[vii] André PROUS. “As indústrias líticas e cerâmicas no Estado de Minas Gerais: dificuldades de interpretação”. Arquivos do Museu de História Natural – UFMG, 8/9, pp. 55-59, 1983/1984.
[viii] Antoine LOURDEAU. Op. cit.
[ix] Paulo Jobim Campos MELLO. Op. cit.; Emilio FOGAÇA; Antoine LOURDEAU. “Uma abordagem tecnofuncional e evolutiva dos instrumentos plano-convexos (lesmas) da transição Pleistoceno / Holoceno no Brasil Central”. Fumdhamentos. São Raimundo Nonato v. 7, pp. 260-347, 2006. Sibeli A. VIANA. “Instruments hors de leurs contextes de production – instruments lithiques plan-convexes mis au jour dans des sites archéologiques litho-céramiques de l’État du Mato Grosso – Brésil”. Revista de Arqueologia AmericanaI, n. 26, pp. 291-329, 2008.
[x] BOEDA et al. Evolution technologique et territoire dans la prehistoire bresilienne: comportements techno-economiques des societes prehistoriques des plateaux central etmeridional du Bresil. Projeto apresentado à CAPES. 2005; Paulo Jobim Campos MELLO. Op. cit.; Emilio FOGAÇA; Antoine LOURDEAU. Op. cit.; Sibeli A. VIANA. Op. cit. 2008.
[xi] P. I. SCHMITZ. Op.cit. 1989.
[xii] W NEVES; M. HUBBE. “Luzia e a saga dos primeiros americanos”. Scientific American Brasil, edição especial, n. 2, pp. 64-71, 2004
[xiii] Para mais informações sobre esta questão, consultar: Paulo Jobim Campos MELLO. Op. cit.; Antoine LOURDEAU. Op. cit. 2006; Emilio FOGAÇA; Antoine LOURDEAU. Op. cit. e Antoine LOURDEAU. Op. cit. 2010.
[xiv] Antoine LOURDEAU. Op.cit. 2010.



[i] Sibeli A VIANA. Op. cit.; Sibeli A VIANA. Análise do sistema tecnológico das indústrias líticas pré-históricas recuperadas pelo Projeto Alto-Araguaia. Relatório de Pesquisa, IGPA. PUC/Goiás, 2010.
[ii] Eric BOËDA. op.cit
[iii] Os suportes dos instrumentos dessa região também provêm de fragmentos não lascados, que portam naturalmente as características desejadas pelo artesão.
[iv] Sibeli A VIANA. Op. cit. 2005; Carolina T BORGES. Oficina lítica de superfície GO-CP-17 (Palestina De Goiás - GO). Atual análise, novas propostas, possíveis interpretações. Monografia de final de curso. PUC-Goiás, IGPA. 2009; Patrícia F.P RODRIGUES. Caçador-Coletor: uma (re)análise do material lítico dos sítios arqueológicos da Região de Palestina de Goiás/GO. Monografia de final de curso. PUC-Goiás, IGPA. 2009; Pedro P GUILHARDI Sítios lito-cerâmicos de Palestina de Goiás: uma abordagem da tecnologia lítica. Monografia de final de curso. PUC-Goiás, IGPA. 2009; Sibeli A VIANA. Op. cit. 2010.

[v] LEPOT, M. Approche techno-fonctionnelle de l'outillage lithique moustérien: essai de classification des parties actives en termes d'efficacité technique. Tese de doutorado apresentada à Université Paris X - Nanterre. 1993.
[vi] Eric BOËDA. Determination des unités techno-fonctionnelles de pièces bifaciales provenant de la Couche Acheuléenne C’3 Base du Site de Barbas I”. In: D. CLIQUET. Les industries à outils bifaciaux du Paléolithique moyen d´Europe occiedentale. Actes de la table-ronde internationale organisée à Caen (Basse-Normandie-France). Liège: ERAUL 98. 2001, p.51-75.
[vii] Para  caracterização específica das categorias dos instrumentos destes sítios, consultar obras completas de Sibeli A VIANA. Op. cit. 2005; MELLO, Paulo Jobim Campos. Análise dos Sistemas de Produção e da Variabilidade Tecnofuncional de Instrumentos Retocados: as indústrias líticas a céu aberto do vale do rio Manso/MT. Tese de Doutorado. PUCRS. Porto Alegre. 2005.; Pedro P GUILHARDI. Op.cit.; Carolina T BORGES. Op. cit. e Sibeli A VIANA. Op. cit. 2010.
[viii] G. SIMONDON. Op.cit.

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