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terça-feira, 17 de abril de 2012

TEORIA ARQUEOLÓGICA, GÊNERO E DIFERENCIAÇÃO SOCIAL NA PRÉ-HISTÓRIA BRASILEIRA: A TRADIÇÃO UNA - 3. A Tradição Una

GLÁUCIA MALERBA SENE
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
Profa. Colaboradora do PPG em Arqueologia, Museu Nacional, UFRJ
PAULO SEDA
LEPAma – Lab. de Est. E Pesq. da América Antiga/NUCLEAS – Núcleo de Estudos das Américas, UERJ
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas


3. A TRADIÇÃO UNA

            A Tradição Una (Sudeste do Brasil) parece ser originária da região amazônica e expandiu-se para o sudeste a partir do noroeste de Minas Gerais, passando pelo norte de São Paulo, pela Serra Fluminense, Baixada de Campos e litoral do Rio de Janeiro, atingindo por fim o Estado do Espírito Santo (SEDA, 2002).[1] Tais grupos humanos ocuparam não apenas grutas em Minas Gerais e na Serra Fluminense como também locais a céu aberto. Sua cerâmica está representada em sua maioria por vasilhames pequenos de forma arredondada (as mais antigas lembram a forma das cabaças), a exceção das urnas funerárias, e é considerada tecnologicamente bem feita. Há ainda ocorrência de material lítico lascado, polido e picoteado, variados adornos encontrados junto aos enterramentos e, nos sítios com melhor preservação, farto material têxtil e vegetal.
            No Rio de Janeiro, o sítio arqueológico que mais se destaca é o sítio do Caju. Situa-se no perímetro urbano do Município de Campos dos Goitacazes, à margem direita do rio Paraíba do Sul, dentro de uma propriedade particular. Foi descoberto durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), e é um dos mais antigos da Tradição no Rio de Janeiro (1453 ± 65 AP (SI-705) a 790 ± 140 AP (Beta 40595)).[2] As primeiras escavações sistemáticas foram realizadas em 1988 sob a coordenação de Ondemar Dias Jr e Eliana Teixeira de Carvalho, com patrocínio da Prefeitura Municipal de Campos, Latin American Archaeological Fund, da Smithsonian Institution e aval do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN) (Foto 1).
            No Sítio do Caju foram identificados dois ritos funerários, a saber: em urnas (16 enterramentos), predominantemente primários e de crianças entre 0-10 anos e em covas (08 enterramentos), primários, de adultos recobertos por vasilhames de cerâmica inteiros e fragmentados (Foto 2). Houve, no entanto, uma ocorrência atípica (01 enterramento) em cova simples sem cerâmica e com forma distinta de deposição. De um total de vinte e cinco (25) enterramentos, foram identificados vinte e sete (27) indivíduos, dos quais seis (06) eram adultos, três (03) do sexo feminino e três (03) do masculino, e vinte e um (21) de sexo indeterminado por se tratarem de crianças.
            Embora a grande maioria dos enterramentos do sítio do Caju apresentasse muitos adornos funerários (como: pendentes de conchas; colares de contas de ossos e dentes de animais; cachimbos e vasilhames de cerâmica) e as estruturas funerárias estivessem em boas condições de preservação, mostra-se muito arriscado a realização de qualquer análise de gênero, uma vez que a amostragem de indivíduos adultos é muito pequena. No entanto, trabalhos sobre os rituais funerários e aspectos bioesqueletais dessa população são perfeitamente viáveis, como os que já foram realizados por MACHADO, 1994; MACHADO, SENE, SILVA, 1994, 1991.
            Em Minas Gerais, encontra-se o sítio arqueológico Gruta do Gentio II, que se mostra o mais completo e mais importante da Tradição Una.
            A Gruta do Gentio II (MG-RP-6) foi descoberta em 1973, durante as prospecções do PROPEVALE – Programa de Pesquisas Arqueológicas no Vale do São Francisco, desenvolvido pelo IAB – Instituto de Arqueologia Brasileira, quando as pesquisas atingiram o Município de Unaí. Durante esta etapa do Programa, o sítio foi um dos que mais se destacou devido à ocorrência de artefatos de cabaça, cestaria, fibras vegetais, cerâmica e lítico, logo nos primeiros níveis deposicionais.
            Segundo DIAS JR. (1976-7, 1991, 1992), a Gruta, localizada na fazenda Vargem Bonita, município de Unaí, noroeste do Estado de Minas Gerais, possui 200m2 de área interna e situa-se num paredão calcário com cerca de 2,5 Km de extensão, no qual há outras inúmeras grutas e abrigos, algumas delas com evidências arqueológicas e todas voltadas para oeste. O córrego mais próximo é o Canabrava, que dista cerca de 500 m do sítio.
            Após a sondagem inicial em 1973, quando foi descoberto, o sítio passou por quatro etapas de escavação (1976, 1977, 1984, 1987), durante as quais foram decapados cerca de 140m2 e identificando-se quatro camadas ocupacionais (Foto 3).
            A composição estratigráfica foi estruturada da seguinte forma:

            CAMADA I - coloração variando da cinzenta ao marrom avermelhado próximo à sua base. Friável e homogênea. Presente em toda a área central, atingindo 140 cm junto à boca, adelgaçando-se para o interior. É a mais abundante em vestígios culturais e para ela foram obtidas oito datações, que a colocam entre 410 ± 60 AP (SI 2836) e 3.490 ± 120 AP (SI 2373), sendo seis delas com idade superior a mil anos.
            CAMADA II - predomina a coloração avermelhada com lentes espessas de coloração esbranquiçada nas extremidades superior e inferior. Menos friável que a camada anterior, com áreas mais compactadas. Foram obtidas quatro datações que a situam entre 7.295 ± 150 AP (SI 2372) e 8.125 ± 120 AP (SI 2373), as demais com mais de oito mil anos;
            CAMADA III - coloração avermelhada com intromissões de pequenas lentes esbranquiçadas e de carvão. Fortemente compactada, está restrita à área mais interna do sítio, onde atingiu 40 cm de espessura. Cinco datações inserem-se entre 8.595 ± 215 AP (SI 5077) e 9.040 ± 70 AP (BETA 3520), sendo as demais intermediárias;
            CAMADA IV - coloração marrom escura, bastante compacta, com espessura ao redor de 10 cm. Foi datada em 10.190 ± 120 AP (SI 6837).

            De acordo com BIRD, DIAS JR, CARVALHO (1991, p.17), ocorreram no local dois horizontes culturais e cronológicos bem definidos. O primeiro, mais recente, compreendendo a Camada I, relaciona-se a uma ocupação de horticultores ceramistas, vinculada à Fase Unaí, cujas características gerais se enquadram nos padrões da Tradição Una, composta de vestígios complexos de cestaria, fiação e tecelagem, utensílios e implementos de materiais variados, como osso, cabaça, couro e madeira, adornos de plumária, conchas, ossos e lítico, cerâmica, artefatos de pedra, além de um grande número de enterramentos, diversos parcialmente mumificados (cf. MACHADO, 1992) e muitos coprólitos (cf. MACHADO et alii, 1981/2).[3] O segundo, mais antigo, compreendendo às demais camadas habitacionais (II à IV), corresponde a ocupações de caçadores-coletores onde há predominância de implementos líticos, muitas fogueiras, restos alimentares e ocorrência de vários enterramentos.
            Entre estes dois horizontes, ocorreu um período de abandono do sítio, enfatizado pela ausência de carvões para datação e de vestígios de ocupação humana, correspondendo a um lapso de tempo de cerca de 3.500 anos.
            Na gruta existem também sinalações rupestres, merecendo destaque o fato de que após as decapagens das camadas arqueológicas foram encontrados pingos de tinta vermelha na base rochosa do sítio (cf. DIAS JR, 1991, 1993, SEDA, 1981/2, 1998).
            Em relação aos remanescentes ósseos humanos, no horizonte caçador-coletor foram encontrados vinte e seis (26) enterramentos e um total de trinta e oito (38) indivíduos. Destes, sete (7) foram identificados como sendo do sexo masculino, quatro (4) femininos e vinte e sete (27) indeterminados dos quais treze (13) eram crianças. Já no horizonte horticultor, foram evidenciados sessenta e nove (69) enterramentos, constituídos de cento e trinta e oito (138) indivíduos. Quanto ao sexo, foram identificados vinte e nove (29) indivíduos masculinos, vinte e seis (26) femininos e oitenta e três (83) indeterminados, dos quais a maioria crianças e adolescentes cujo sexo não é metodologicamente passível de determinação[4].
            Para o estudo de gênero, o horizonte horticultor se mostra o mais adequado, pois apresenta uma boa amostragem de indivíduos do sexo masculino e feminino e possui um amplo e variado acervo de materiais culturais associados, o que não ocorre no horizonte caçador-coletor. Ademais, a partir de um estudo mais completo dos rituais funerários (SENE, 1998), observamos que houve um tratamento diferenciado dos indivíduos femininos em relação aos masculinos, especialmente através das variáveis de tratamento dado ao corpo, acompanhamento funerário e distribuição espacial dentro da gruta, dentre outras.
             Entre os horticultores, o enterramento primário - um tipo de tratamento dado ao corpo após a morte do indivíduo - foi preferencialmente destinado às mulheres, embora haja homens, em menor número que receberam tal cuidado. Destacamos duas ocorrências que parecem expressar significados diferenciados: trata-se dos enterramentos de dois indivíduos femininos (nos 4 e 12), os únicos idosos de todo sítio, que apresentaram farto e diferenciado acompanhamento funerário, tendo sido cuidadosamente depositados na área mais interna da gruta, suscitando possivelmente um desejo do grupo de protegê-los. O enterramento 4 teve a idade diagnosticada entre 60 e 70 anos, enquanto o 12, em mais de 50 anos. Este último destaca-se ainda mais por apresentar uma grande enxó fragmentada - instrumento para desbastar madeira - junto ao corpo, que poderia ter sido de uso próprio ou de um parente próximo, podendo ser a fragmentação decorrente da utilização exacerbada ou intencional, significando o fim da vida (cf. UCKO, 1969) (Foto 4).
Destacam-se certos acompanhamentos funerários dentre eles: os esqueletos de dois pequenos animais sobre os pés, sendo um de ave, o qual poderia ser um animal de estimação; alguns sabugos de milho e uma cabaça, podendo ser evidências materiais relacionados com a preocupação em alimentar o morto durante sua passagem para outra vida; além de pendentes e adornos atípicos, que se sobressaíram pela quantidade, qualidade e variedade. Autores como RODRIGUES (1983) e UCKO (op. cit.), entre outros, têm apresentado exemplos etnográficos que demonstram estas interpretações simbólicas.
            Quanto à valorização do idoso, parece estar evidente sua importância para a comunidade (ressaltando-se a idade avançada para os padrões de então), já que 100% deles tiveram tratamento diferenciado não só no que se refere à idade, mas também por serem indivíduos femininos. No Vietnam, por exemplo, o status do ancião é muito valorizado e o respeito que lhe é conferido durante sua vida deve continuar após sua morte, quando ele se transformará em ancestral a ser cultuado (RODRIGUES, op. cit.). Entre os grupos tribais brasileiros, aos idosos é destinado um maior respeito e, conseqüentemente, um maior “poder” frente à comunidade, devido à sabedoria que encerram (RIBEIRO, 1987, MELATTI, 1987). Evidentemente, pelas circunstâncias contextuais desses dois casos no horizonte horticultor do sítio, acredita-se na intencionalidade inexorável desses rituais funerários.
            Ainda no que se refere ao tratamento do corpo no horizonte horticultor, percebe-se que, se por um lado, os enterramentos femininos do tipo primário foram em maior número, por outro, os do tipo secundário apresentaram um percentual maior de masculinos, demonstrando, pois, uma diferenciação do tipo de tratamento dado a sexos distintos. Embora haja discordância de alguns autores, no sentido de acreditarem que a distinção social em vida seja ela sexual e/ou etária, possa ser ou não necessariamente reiterada por ocasião da morte, indagamos até que ponto o status muda com a morte do indivíduo ou mesmo é omitido. Assim, se um membro do grupo ocupa uma posição de destaque frente à comunidade, é provável que isto fosse expresso no seu ritual funerário e arqueologicamente identificado através da combinação de uma série de variáveis e de observações contextuais. Como enfatizou BINFORD (1972), quanto maior a importância do indivíduo, maior será o envolvimento da comunidade e maior o dispêndio de energia na realização da cerimônia mortuária, o que parece ter sido o caso dos enterramentos citados.
            No horizonte horticultor, os acompanhamentos funerários apresentaram-se de forma mais elaborada e em maior quantidade e variedade junto aos enterramentos femininos, muitos constituindo peças únicas. Sendo assim, merece destaque também o enterramento 11, que a priori se destaca pela quantidade, qualidade e variedade de acompanhamentos funerários (5823 contas de sementes, um pendente de osso de crânio de peixe, cento e vinte e uma contas discoidais de conchas, tecidos, um pendente lítico fusiforme, etc), muitos dos quais são ocorrências únicas entre os enterramentos em geral ou mesmo entre os indivíduos femininos.
            A presença de muitos vestígios de alimentos, por exemplo, depositados intencionalmente junto aos enterramentos do horizonte horticultor expressa significados importantes: por um lado, a grande quantidade de alimentos cultivados (milho, amendoim) encontrados reafirma que as estratégias de subsistência (subsistema econômico) dessa população tinham se modificado em relação às do horizonte anterior e se tornaram possivelmente à base de sua economia; por outro, a presença de espigas de milho ou de suas sementes sem o sabugo, de amendoim e de cabaças, possíveis recipientes, junto aos indivíduos 4, 9, 10, 12, 16, 18, 28, entre outros, pode assinalar a preocupação da comunidade no sentido de suprir o morto com alimentos para sua longa jornada até a outra vida (cf. RODRIGUES, op. cit., UCKO, op. cit.) ou demonstra a importância do cultivo de alimentos àquela comunidade, cujos exemplares devem acompanhar o indivíduo mesmo depois da sua morte.
            Quanto ao local de deposição dos enterramentos no horizonte horticultor, observou-se a recorrência dos mais importantes, tais como o 4, o 10 e o 12, depositados no fundo da Gruta, reafirmando-se possivelmente a idéia de maior proteção. A grande maioria, no entanto, está na área intermediária cuja localização protegeria a todos da ação da chuva, do sol, do vento e dos animais.
            Contudo, uma série de análises biológicas e químicas fundamentais para o estudo de gênero no Sítio Gruta do Gentio II ainda está por ser realizada, tais como Harris lines, dosagens de cálcio, zinco, estrôncio, carbono, nitrogênio e análise dentária para avaliação nutricional, dentre outras. Desta forma, somente a compilação final de todos os dados decorrentes destas análises com aquelas de procedência arqueológica relacionadas aos indivíduos masculinos e femininos poderão fornecer informações confiáveis sobre gênero e conseqüentemente sobre desigualdade social na pré-história brasileira. Alguns indícios desta regularidade já foram detectados através do estudo dos rituais funerários.


[1] Cf. CHMYZ et alii, 1976. “Tradição - grupo de elementos ou técnicas com persistência temporal.”
[2] AP, antes do presente ou anos decorridos, contando-se, por convenção, a partir de 1950.
[3] Cf. CHMYZ et alii, 1976. “Fase - Qualquer complexo de cerâmica, lítico, padrões de habitação, etc., relacionado no tempo e no espaço, num ou mais sítios.”
[4] Para maiores informações mais detalhadas sobre os rituais funerários dos grupos caçadores-coletores e horticultores da Gruta do Gentio II ver SENE (1998), Dissertação de Mestrado. 

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